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Partida

Mais uma vez me flagro admirando a beleza rude de sua boca entreaberta, como uma dura lembrança dos beijos que nunca serão completamente meus. Sua pele coberta de listras douradas de um sol nascente, sortudo o bastante para aquecer mais seu corpo do que meus abraços. Faixas de ouro, cálidas, faixas de bronze, gélidas. Suas costas nuas, viris, um retrato fiel do quanto a força da beleza pode machucar. Você dorme o sono tranquilo, como só os despreocupados sem alma conseguem. Seu rosto quase infantil contrasta com um corpo que parece ter sido planejado para fazer sofrer.  Sua aparição na festa de ontem me fez estremecer. Mesmo depois de quase uma década, te ver vindo em minha direção causou a mesma sensação de quando te via passar pelos portões da Universidade. Eu nunca estive preparada para você, e mais uma vez me deixei ser engolida pelo seu charme, para ser abandonada logo depois. Sempre e sempre, um círculo perfeito de ilusão. Os lençóis pesam toneladas, mas não suficie...

Por trás da armadura

Por trás da fachada minuciosamente equilibrada pulsam sentimentos conflitantes e memórias cruéis. Meu discreto sorriso esconde uma alma que já esqueceu o significado da palavra "confiar". Sigo em frente desbravando mares e domando os monstros marinhos que surgem pelo caminho.  Guerreira sou, mas não se engane: Por trás de minha armadura feita de prata e lágrimas há um coração tão frágil quanto o seu.

A primeira manhã

Houve o tempo em que Lúcio acordava quando a maioria dos mortais se recolhiam em seus leitos. Mas nos últimos cem anos as noites tornaram-se cópias dos dias, e as ruas ainda estavam repletas de gente quando os últimos raios crepusculares tingiam o firmamento. Lúcio considerava tal invasão de luzes, sons e cores na rotina noturna uma verdadeira heresia. O ciclo da vida girava cada vez mais rápido, a habilidade autodestrutiva dos humanos atingia seu clímax para dar lugar a uma nova ordem de antigos erros. Já presenciara esse processo diversas vezes, mas agora sentia-se exausto demais para suportar esse espetáculo. Essas breves reflexões duraram poucos minutos...ou segundos? Tempo suficiente para o céu enegrecer por completo enquanto todas as luzes dos postes eram acesas. Lúcio sentia fome de vida, sua natureza rebelde exigia ser saciada e não admitia demora. Mas ele não se satisfaria com qualquer sangue, era o gosto Dela que ansiava. Vestiu uma bata branca com detalhes dourados, ...

Sem ar

https://pixabay.com/pt/moinho-moinho-de-vento-vento-c%C3%A9u-208571/ Há muitas formas de perder o fôlego, ficar sem ar, padecer em desesperadora dispneia. Foi isso que Éolo pensou enquanto sentia sua vida esvaindo-se na mesa de um caro restaurante. Sua bela e quase indecentemente jovem amante o olhava estupidificada, gritando por ajuda e o deixando ainda mais desesperado.  Éolo pensou no ridículo da situação. Morrer assim, sem ar, devido a um fragmento daquela refeição deliciosa e mais cara do que seis meses do salário dos funcionários de sua fábrica. Tentava inutilmente puxar um resquício de ar que fosse, um ventinho qualquer, um humilde suspiro...Mas sua garganta rebelara-se, magoada com o intenso trabalho durante o almoço. Custava dar uns minutinhos para a laringe e faringe se organizassem? Seus pulmões também entraram na revolta, mimados como eram, não conseguiam ficar um tempinho sem ar. Egoístas! Então Éolo, já quase inconsciente, foi caindo da cadeira. não havi...