Houve o tempo em que Lúcio acordava quando a maioria
dos mortais se recolhiam em seus leitos. Mas nos últimos cem anos as noites
tornaram-se cópias dos dias, e as ruas ainda estavam repletas de gente quando
os últimos raios crepusculares tingiam o firmamento. Lúcio considerava tal
invasão de luzes, sons e cores na rotina noturna uma verdadeira heresia. O
ciclo da vida girava cada vez mais rápido, a habilidade autodestrutiva dos
humanos atingia seu clímax para dar lugar a uma nova ordem de antigos erros. Já
presenciara esse processo diversas vezes, mas agora sentia-se exausto demais
para suportar esse espetáculo.
Essas breves reflexões duraram poucos minutos...ou
segundos? Tempo suficiente para o céu enegrecer por completo enquanto todas as
luzes dos postes eram acesas. Lúcio sentia fome de vida, sua natureza rebelde
exigia ser saciada e não admitia demora. Mas ele não se satisfaria com qualquer
sangue, era o gosto Dela que ansiava. Vestiu uma bata branca com detalhes
dourados, uma calça bege e calçou uma simples sandália de couro. A escolha do
traje o fez rir ao pensar em como os escritores relatam criaturas como ele.
Enquanto muitos temiam o escuro, o perigo escondia-se em alvas vestes.
Ao sair do luxuoso hotel Lúcio se lembrava dos
diferentes abrigos que tivera: O pobre catre do orfanato administrado por
jesuítas rigorosos, os mosteiros pelos quais passou quando ainda era um noviço
cuja fascinação pelo pecado superava o temor divino, as confortáveis
instalações da corte no Rio de Janeiro, após uma série de artimanhas
facilitadas pelos seus novos poderes; palacetes de ricas viúvas; quartos de
pousadas, hotéis, motéis pelo Brasil e mundo afora. Em cada viagem um nome
impresso no documento, mas sempre o mesmo rosto incólume aos efeitos do tempo. E,
contrariando um dos maiores clichês referentes a sua espécie, nenhum esquife
sentiu o peso de seu corpo.
A vida noturna em Salvador era agitada, principalmente
naquele bairro boêmio. A cidade unia o moderno com o antigo, como sua própria
vida. O álcool consumido em nos bares anestesiava decepções. “Ah, se essas
pobres almas conhecessem o verdadeiro líquido salvador! ”, pensou Lúcio,
sedento do rubro néctar. Peles de todas as cores e aromas o tentavam em
delirantes promessas, mas nenhuma se igualava ao belo a macio colo negro que
aprendera a amar. Precisava Dela e seguia seu rastro, sorvendo fiapos do cheiro
inconfundível que inebriava.
Adentrou pela parte mais sombria e triste da
redondeza, onde prostitutas serviam seu corpo, mas raramente sua essência. As
paredes dos casarões recendiam a suor, álcool, sexo e lágrimas, unindo em um só
local todo o desespero e prazer de uma sociedade doente. Vendo aqueles seres em
meio a imundície, dispostos a tudo para alguns minutos de êxtase proporcionados
por uma transa ou gramas de pó, Lúcio percebeu que os humanos, e não ele, eram
os verdadeiros amaldiçoados. Sentiu uma raiva imensa ao pensar que Ela dividia
o mesmo espaço com essas criaturas nojentas, perdendo a cada noite seu brilho.
Chegou à porta de um casarão de cor indefinida. Há
meses Lúcio fazia o mesmo percurso, entregando-se ao simples prazer de ter a
pele Dela junto a sua, beijar e não morder, cuidar e não matar. Ele pouco
falava, mas de alguma forma Ela sabia seu segredo. Eram duas almas destinadas
ao desespero, julgadas pela luz do dia e reféns da noite. Ambos precisavam de
salvação, mas não podiam salvar um ao outro.
Ela estava praticamente inerte no leito. Respirava
rápida e ruidosamente, exibindo quase com orgulho sua agonia. O suor, olheiras,
cabelo desalinhado e célere emagrecimento não foram suficientes para tirar sua
beleza. Seu pulso continuava forte e rítmico, como que desafiando Lúcio.
– Estou morrendo – Ela disse com dificuldade – E minha
maior tristeza é saber que sua solidão será ainda maior sem mim. Nunca conheci
alguém tão solitário quanto você. Como vou partir tranquila? Por que me deixa
morrer assim? Não percebe que sua vida será ainda mais miserável sem minha
presença?
– Dentre tantos poderes você me pede minha maior
fraqueza. Como todos os humanos você tem a benção da ignorância, mas anseia por
desgraçar-se pelo medo da morte. Não sou cruel o bastante para lhe passar minha
maldição. Vejo a história em ciclos intermináveis e repetitivos, sem poder
participar dela. Sou obrigado a suportar o peso dos séculos sem a esperança de
um paraíso após a morte. Nada é pior do que isto.
Ditas em voz altas as palavras tornaram-se poderosas e
Lúcio teve certeza que só haveria uma escolha possível. Se dirigiu para um
móvel próximo onde havia uma garrafa de vinho barato. O líquido de péssima
qualidade apenas reacendeu seu desejo por algo mais nobre. Ela tossia
violentamente enquanto ele a abraçava e ao mesmo tempo penetrava sua carne em
busca de sangue. Sim, era um vampiro, e seu instinto ordenava que tirasse
vidas, nunca as salvasse. Sem piedade, honra ou arrependimento. Mas afinal não
eram assim também os homens? Só o prazer importa, ainda que as custas da dor
alheia. Não havia espaço para o amor.
A vida estava próxima do fim quando Ela sussurrou:
– Você entendeu. Obrigada.
Lúcio beijou seu rosto frio e foi até a única janela
do quarto. Escancarou-a e retornou ao leito. Abraçados e unidos pela morte que
vinha eles viram os raios da primeira, e última, manhã que passaram juntos.
O Prazer venceu a Morte.
ResponderExcluirA verdadeira imortalidade.
ExcluirObrigada pela visita, moço;)
Texto muito bem escrito e cheio de significado.
ResponderExcluirParabéns!
Obrigada pela visita feita ao blog.
Desejo uma ótima semana.
“Todo o nosso saber se reduz a isto: renunciar à nossa existência para podermos existir.” (Johann Goethe)
cheirinhos
Rudy
http://rudynalva-alegriadevivereamaroquebom.blogspot.com.br/
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